Page 5 - O Elo - Abril 2024 - A Inspeção do Trabalho Brasileira.
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Entrevista


        ignição de um sistema inspecional nacionalmente           Qual a importância da Inspeção do Trabalho no
        organizado (o que só veio a acontecer, de fato, em 1952),   enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo?
        posso dizer que durante quase setenta anos, entre         Começo respondendo essa pergunta apresentando
        1942 e 2010, a Inspeção do Trabalho brasileira operou   uma questão que eu discuto no livro (imagino eu,
        segundo um conjunto de paradigmas mais ou menos        de forma bastante aprofundada), e que diz respeito
        uniforme. Mesmo com os primeiros sinais de mudança,    ao que eu chamo de télos protetivo da Inspeção do
        e que constituíram uma importante e problemática       Trabalho. Tal questão nos forçaria a indagar se, de fato,
        fase de transição, sobretudo a partir de 2004, a lógica   a inspeção laboral protege o trabalhador e, sendo o
        operativa do sistema inspecional brasileiro preservou   caso, como isso se dá. Essa questão não é tão óbvia
        suas configurações que a caracterizaram durante mais da   quanto parece, mesmo quando se busca o refúgio
        metade do século XX. Mas também é fato que em 2010 a   seguro da imparcialidade subjetiva ao nos afirmamos
        Inspeção do Trabalho brasileira passou por uma mudança   como “fiscais da lei”. O fato é que o télos protetivo é
        institucional que eu considero a mais significativa, desde   uma construção discursiva poderosa, e que orientou a
        a publicação do primeiro Regulamento (RIT), em 1965.   definição de uma identidade institucional totalmente
        No livro eu busco esmiuçar grande parte dos aspectos   vinculada ao sistema de proteção social do trabalhador
        que circundam essa mudança. O  que posso adiantar      assalariado, resistindo bem ao debate, que no Brasil
        aqui é que a partir da virada deste século, e durante toda   retroage ao final dos anos 90, quanto ao próprio
        a primeira década, ocorreram transformações pontuais   caráter tuitivo do direito do trabalho.  Todavia, esse
        e que foram determinantes para a formação da atual     télos discursivo nunca foi capaz de irradiar seus efeitos
        política inspecional brasileira. Essas reconfigurações se   para todos os sistemas sociais da mesma forma e com
        deram nos campos simbólico, comunicativo, normativo,   a mesma intensidade. Quando voltado para o próprio
        formativo, organizativo, dentre outros. O resultado dessa   Estado, então, ele é praticamente escanteado, bastando
        reconfiguração, entre  nós,  é divisivo,  sobretudo  para   lembrar que em meados dos anos 40, o argumento
        os AFTs das gerações de 80 e 90, que operaram sob      arrecadatório  já  era  mobilizado  em  favor  dos  Fiscais
        o  desenho institucional  de  1994,  cujo compromisso   e Inspetores interinos e extranumerários. A verdade é
        com  a  concertação  e  o  diálogo  social  foi  fortemente   que o télos protetivo sempre conviveu com o fantasma
        inspirado  pelo frescor  da  CRFB/88. Essa geração,    do argumento pro domo, isto é, em causa própria,
        contudo, é minoritária, de modo que a tendência é      pois ao se defender a fiscalização laboral estar-se-ia,
        que essa memória se desvaneça com o tempo. De todo     automaticamente, defendendo a classe trabalhadora.
        modo, o que deixo claro no livro é a minha discordância
        quanto ao mantra que se costuma entoar, delegando-     Eu explico no livro que a nossa elogiada fiscalização do
        se aos efeitos deletérios da política tudo de ruim que   trabalho escravo contemporâneo nasceu como uma
        porventura ocorra com a Inspeção do Trabalho brasileira.   política derivada da agenda ambiental, introduzida no
        Tratar a Inspeção do Trabalho brasileira na voz passiva é   Brasil no início dos anos 90, mas que no decorrer das
        um equívoco histórico, pois seria ignorar a trajetória e   décadas seguintes constituiu uma identidade própria
        a capacidade que a nossa inspeção laboral demonstrou   e se notabilizou, inclusive internacionalmente, como
        de se movimentar pelos sistemas político, econômico e   uma das faces mais visíveis da Inspeção do Trabalho
        jurídico, a despeito de suas tensões internas. Ignorar o   brasileira. A despeito de tudo o que se possa examinar
        fato, por exemplo, de que não houve sequer um único    e debater sobre essa política inspecional, o fato é que a
        episódio de reconfiguração das relações salariais no   fiscalização do trabalho análogo ao de escravo, a meu
        Brasil em que não se contou com a representação da     ver, exerce algumas funções importantíssimas, entre as
        Inspeção do Trabalho em algum nível. A conclusão óbvia   quais eu destaco a de custodiar o caráter civilizatório
        é a de que o futuro da Inspeção do Trabalho brasileira,   da nossa sociedade salarial e a de legitimar o já
        excetuando a hipótese radical de uma ruptura político-  mencionado télos protetivo. No fim das contas, embora
        institucional, será aquele para o qual concorrerão     precisemos dizer que a Inspeção do Trabalho brasileira
        seus próprios movimentos de resistência, resiliência e   não se esgota na fiscalização do trabalho escravo
        adaptação. Quanto aos desafios, são muitos, decerto.   contemporâneo, sua atuação se vem mostrando
        Todavia, para mim, destaco aquele que – acredito – seja   essencial para a manutenção da integridade e distinção
        compartilhado por todas as gerações em atividade:      do sistema inspecional brasileiro, sobretudo em suas
        seguirmos sendo imprescindíveis e relevantes.          irritações com o sistema político.

                                                                                                www.sinpait.org.br   5
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