Page 4 - O Elo - Janeiro 2025 - “Mudo o caminho, mas sigo caminhando”
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Entrevista
Antes de assumir o cargo no Ministério do Trabalho,
você decidiu atuar na área de saúde comunitária em
Angola. O que motivou essa escolha?
Em 1983, fui aprovado no concurso para Fiscal do
Trabalho - Médico do Trabalho do Ministério, mas antes
de assumir, recebi um convite para trabalhar num
projeto de saúde comunitária na República Popular de
Angola, um país recém-independente e em guerra. A
decisão não foi fácil, mas aceitei o desafio.
O sistema de saúde angolano estava devastado.
Portugal, ao se retirar, deixou o país sem médicos e
enfermeiros qualificados. No início, trabalhei com Foto: Arquivo Pessoal Foto: Arquivo Pessoal
uma equipe de médicos cubanos e, posteriormente, ,
quando eles foram transferidos para outra região, tive
que assumir toda a responsabilidade apenas com o
outro médico brasileiro com quem fazia dupla, que, não
por acaso, era meu irmão. Foi um período desafiador e
de grande aprendizado, quando enfrentamos desafios
como falta de infraestrutura, malária endêmica e uma
precária estrutura hospital onde realizei partos sem
eletricidade, tendo que recorrer à luz de lampião para na prevenção de doenças e acidentes ocupacionais.
realizar os procedimentos médicos. Isso, contudo, não desmerece o importância histórica
Meu trabalho envolvia a indústria petrolífera da auditoria fiscal do trabalho, que continua sendo
angolana, que financiava ações comunitárias. Buscamos fundamental para assegurar que os trabalhadores não
integrar o conhecimento local às nossas práticas tenham que adoecer ou mesmo perder a vida enquanto
médicas, respeitando curandeiros e profissionais de trabalham para poder ganhá-la.
saúde comunitária. Aprendi que, para atuar na saúde Sempre defendi que a discussão sobre competências
pública, especialmente na condição de médico deve ser pautada pela preocupação sobre o que é
estrangeiro, era fundamental compreender e respeitar melhor para os trabalhadores e trabalhadoras do nosso
a realidade e cultura locais. país. Infelizmente, por falta de vontade política, continua
a não haver um efetivo sinergismo entre as ações do
Como foi sua entrada na Auditoria-Fiscal do SUS e do Ministério do Trabalho.
Trabalho?
Quando voltei ao Brasil em 1986, entrei com um Um novo concurso para auditores scais foi aberto.
pedido para assumir o cargo que havia adiado. Em Que conselho você daria aos futuros pro ssionais?
agosto de 1987, finalmente tomei posse como auditor Ser auditor fiscal do trabalho não pode ser apenas
fiscal do trabalho. uma opção na busca de uma carreira estável. O auditor
Naquela época, a fiscalização da saúde e segurança precisa ter um olhar humanista e compreender que seu
do trabalhador dentro do Ministério do Trabalho tinha trabalho deve ser um instrumento de transformação
pouca visibilidade. Havia um grupo de auditores, social, em defesa dos direitos dos trabalhadores.
principalmente dentre os que haviam ingressado Infelizmente, muitos novos auditores chegam
por meio do concurso de 1983, que compartilhava a sem esse pensamento, pois vêm de um ambiente de
ideia de que era preciso transformar essa realidade, preparação para concursos que nem sempre valoriza
valorizando a participação dos sindicatos e dos próprios essa visão. É obrigação do Ministério do Trabalho formar
trabalhadores na luta por condições laborais dignas. esses profissionais dentro de uma cultura de defesa dos
Esse grupo promoveu mudanças importantes e trouxe direitos trabalhistas. Aposentadoria, mas não inatividade
uma nova abordagem para a fiscalização.
Como você encara esse novo momento?
Você defende que a scalização das condições de Não considero que minha trajetória tenha
trabalho não deve ser exclusiva da Auditoria-Fiscal do terminado. Como disse Eduardo Galeano, a busca
Trabalho. Como vê o papel do SUS nessa área? da utopia nos faz continuar caminhando. Continuo
Muitos colegas entendem que a fiscalização da atuando na Câmara Paulista para Inclusão das Pessoas
saúde do trabalhador deve ser feita exclusivamente pelo com Deficiência e agora pretendo aprofundar pesquisas
Ministério do Trabalho, mas eu discordo. A Constituição sobre acidentalidade no trabalho para pessoas com
Federal de 1988 estabeleceu que o SUS também tem deficiência, um tema ainda pouco explorado.
competência fiscalizar as condições de trabalho. Isso A aposentadoria não significa o fim da luta. Mudo o
significa que o Sistema Único de Saúde pode e deve atuar caminho, mas sigo caminhando.
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