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Entrevista
Em abril de 2021, um trabalhador com Covid-19 foi nem trabalho. Em um resgate que fizemos em Mato Gros-
resgatado do trabalho escravo no plantio de cana-de- so, após receber uma boa quantia de verbas rescisórias
-açúcar no interior de São Paulo. Foi um caso isolado ou com assistência do poder público federal, um trabalhador
surgiram outros? proveniente do Maranhão perguntou se podia ter uma
É difícil se ter uma estatística precisa de casos de Covid poupança para depositar aqueles valores.
19 dentro do número de trabalhadores resgatados, tendo Elogiamos a postura dele de guardar o dinheiro, mas
em vista a precariedade de rotinas profiláticas nas frentes ele disse que era apenas para não ter que levar aquele
de trabalho rurais, em especial a cana-de-açúcar, onde o monte de notas para a outra cidade que ele iria, pois lá
trabalho por prazo determinado é a prática mais utilizada, tinha trabalho para ele e o “gato” estava esperando por ele,
não se tendo sequer, em grande parte das contratações, o pedindo apenas para contar o dinheiro para as despesas
exame médico admissional. Tais omissões que visam bai- da viagem e pagar pela passagem ao mesmo gato que o
xar o custo das contratações dos trabalhadores, em sua esperava. Mesmo explicando e orientando o trabalhador
maioria migrante, prejudicam a identificação de casos de sobre o que havia acabado de acontecer, ele não perce-
trabalhadores resgatados com Covid. beu a gravidade de sua realidade, nem assimilou nossas
informações.
Houve ainda o caso do Maranhão, em 2020, em que tra-
balhadores pagaram R$ 50 a um intermediador para O trabalho escravo não se limita ao campo, em quais
trabalhar na plantação de cebolas em Santa Catarina, outras áreas encontram-se trabalhadores nesta situa-
onde passaram a ser escravizados. Existe perceptivas ção com mais incidência?
para a erradicação do trabalho escravo no Brasil? Temos exploração de trabalho em vários segmentos.
Os fluxos migratórios dos trabalhadores que são recru- Trabalho doméstico, indústria da confecção, construção
tados por pessoas que se valem e lucram com a necessi- civil, venda de alimentos em lanchonetes, agência de mo-
dade de trabalho para sobreviver não serão estancados delos são alguns exemplos. Na medida que os métodos
com facilidade nem a curto e nem a médio prazo. Exis- de práticas escravocratas vão sendo explicitados na im-
tem muitas pessoas que ganham dinheiro com o ciclo prensa, em palestras, trabalhos acadêmicos, livros, artigos
da escravidão, de intermediadores de trabalho a pensões, e outros meios de comunicação e redes sociais, vão apa-
restaurantes, empresas de ônibus (boa parte clandestina) recendo focos de trabalho escravo em outras atividades
bares, profissionais do sexo, o que torna bem difícil a mis- que não apresentavam tais sintomas e isso faz com que
são dos atores que enfrentam o problema. mais casos de trabalhadores submetidos à condição aná-
A Auditoria Fiscal do Trabalho vem enfrentando a loga a de escravo apareçam em atividades até então não
questão há quase trinta anos e ainda está longe de exter- percebidas, como empresas de telemarketing ou ceitas
minar tais práticas. O que precisa fazer é envolver ainda religiosas. Mas a incidência maior ainda é no campo.
mais os atores estaduais e municipais com o problema,
para se ter políticas públicas preventivas e remediadoras Como o auditor-fiscal se sente diante de uma realidade
mais eficazes visando melhorias de ambientes de traba- tão deprimente?
lho e melhores formas de contratação. A realidade da neoescravidão, em termos de fiscaliza-
Não é indigno o trabalhador migrar da sua região para ção do trabalho, deve ser tratada sob o manto das normas
outra para se ter trabalho e garantir a sua sobrevivência, trabalhistas. Logo, o servidor público responsável por tal
não sendo também proibido. O que precisa cada vez mais, averiguação, no caso a Auditoria- Fiscal do Trabalho, deve
é disseminar as práticas eliminadoras do trabalho escravo agir com rigor diante dessas situações. Mas não devemos
dentro do próprio fluxo de migração, como contratação esquecer que somos seres humanos e determinadas rea-
anterior ao deslocamento, visando afastar intermedia- lidades vistas provocam reações em cada Auditor Fiscal,
dores de mão de obra (gatos) e a informalidade, meios de indignação e de lamentos. Não é nada agradável pre-
de transporte adequados e dentro das normas definidas senciar um ser humano passando fome no local que jus-
pelos órgãos competentes de transporte de passageiros, tamente trabalha para sobreviver.
alojamentos adequados e meio ambiente de trabalho
saudável. São medidas básicas que afastam grandes pro- O sr. também atuou na área do Porto, que é outro uni-
blemas. É necessário, portanto, o envolvimento de em- verso muito complexo. A realidade lá é diferente?
presários contratantes, governos estaduais e municipais Há algum tempo a atividade trabalhista portuária era
estabelecendo-se parcerias de compromisso para erradi- mais conturbada, face à grande força que os sindicatos das
cação entre si, com o auxílio e presença de autoridades categorias envolvidas, como a de estivadores e capatazia,
federais, como a Auditoria Fiscal do Trabalho, Ministério por exemplo, possuíam nas áreas dos portos públicos, ge-
Público do Trabalho e as Polícias Federais, por exemplo. rando repetidas greves com vistas a determinados avan-
ços seguindo o que ditos sindicatos consideravam como
Existem pessoas que realizam trabalho análogo ao da prioridade. Atualmente, com uma política de emprego de
escravidão e não têm consciência disso? mão de obra mais concentrada nos Órgãos Gestores de
Sim, infelizmente ainda é uma dura realidade. A neces- Mão-de-Obra – OGMO em cada porto e principalmente
sidade de sobrevivência do ser humano não escolhe local nos terminais privativos de cargas em áreas portuárias es-
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