Diante de graves crises econômicas, motivadas por vários fatores, dentre eles pandemias que já marcaram períodos históricos, as relações de trabalho são afetadas imediata e diretamente.
Nesse cenário, como entidade sindical que representa a categoria de Auditores-Fiscais do Trabalho, no Estado de São Paulo, cuja atribuição é zelar pelo cumprimento das normas de proteção ao trabalho, o SINPAIT vem apresentar breves considerações sobre o texto da Medida Provisória n. 927, de 22 de março de 2020, a fim de esclarecer seus objetivos para a promoção de um possível debate sobre seus impactos.
A referida Medida Provisória (MP) visa apresentar e disciplinar as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências.
A primeira consequência da medida provisória é atribuir à natureza de força maior ao estado de calamidade pública decretada. Essa previsão, por si só, já traz os impactos da disciplina legal da CLT sobre a matéria, contidos nos artigos 501 a 504.
Ao invocar o artigo 501 da CLT, a Medida Provisória impõe que as restrições aos contratos de trabalho, decorrentes da força maior, conforme previsto no §2º do art. 501 da CLT, são aplicáveis quando houver comprovação que tal situação afeta substancialmente, ou for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa; do contrário, as restrições não se aplicam.
A Medida Provisória autoriza a autocomposição, mediante a celebração de acordo individual escrito entre empregado e empregador escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição. Tal previsão impõe à prevalência do acordado sobre o legislado. A partir dessa hipótese excepcional, a hierarquia das normas trabalhistas, durante o estado de calamidade, sofre inversão, atribuindo-se ao contrato individual de trabalho preponderância sobre dispositivos legais, inclusive sobre instrumentos normativos coletivos. Contudo, constitucionalmente, os direitos trabalhistas somente podem sofrer restrições por meio do exercício da autonomia privada coletiva, nas hipóteses previstas, e não individual. Ou seja, a Constituição determina a ordem hierárquica das fontes normativas trabalhistas.
A MP traz o rol de medidas que poderão ser adotadas pelos empregadores, quais sejam (Art. 3º):
I – o teletrabalho;
II – a antecipação de férias individuais;
III – a concessão de férias coletivas;
IV – o aproveitamento e a antecipação de feriados;
V – o banco de horas;
VI – a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;
VII – o direcionamento do trabalhador para qualificação; e
VIII – o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.
Todas as medidas foram detalhadas em capítulos próprios.
O teletrabalho já é uma modalidade prevista na CLT, precisamente nos artigos 75-A a 75-E. Porém, conforme previsto na MP (Art. 33), não se aplicam aos trabalhadores em regime de teletrabalho, nos termos do disposto nesta Medida Provisória, as regulamentações sobre trabalho em teleatendimento e telemarketing, dispostas na Seção II do Capítulo I do Título III da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452.
A MP avançou na questão da disponibilização do equipamento e da infraestrutura para viabilização do teletrabalho. De acordo com a MP, as disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, pela manutenção ou pelo fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância e ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado serão previstas em contrato escrito, firmado previamente ou no prazo de trinta dias, contado da data da mudança do regime de trabalho (art. 4º, §3º). Se não for possível a disponibilização dos recursos necessários, o período da jornada normal de trabalho será computado como tempo de trabalho à disposição do empregador (art. 4º, §4º, inciso II).
Quanto à antecipação das férias, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados, trata-se de medidas que, em curto espaço de tempo, podem solucionar, em curto espaço de tempo, problemas decorrentes da suspensão das atividades da empresa ou estabelecimento.
Prevê-se até mesmo a antecipação de férias futuras, com possibilidade de pagamento do adicional ao final das férias até a data de pagamento da gratificação natalina, nos termos da lei específica. Entende-se que medidas desse jaez têm caráter paliativo, dado que o quadro da pandemia pode se arrastar por meses, demandando medidas mais adequadas para o tratamento da situação em um prazo maior. Não obstante essa ponderação, são medidas que podem afastar o primeiro impacto sofrido pela economia nesse início de combate à pandemia.
Nessa mesma esteira, mas com um raciocínio inverso, há a previsão de constituição de banco de horas, por meio de acordo coletivo ou individual formal, em favor do empregado ou do empregador, para compensação, em até dezoito meses, contado da data de encerramento da calamidade pública, do tempo em que as atividades da empresa ou estabelecimento ficaram interrompidas. A MP determinou a compensação não poderá resultar em extrapolação da jornada até o limite de dez horas diárias. A medida atende a uma necessidade futura de retomada das atividades econômica, após um período considerável de paralisação. Vale lembrar que a MP reforçou o limite da jornada diária máxima, sendo que ainda há de se contemplar o limite de jornada semanal previsto constitucionalmente (Art. 7º, inciso XIII).
Um tema bastante relevante é a o da suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho. A MP previu a suspensão da obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto dos exames demissionais (art. 15). Em tempo de pandemia, em que a condição de saúde da população é essencial, a inexigibilidade da realização de exame admissional suscita inquietação, dado que a contratação de pessoas sem uma prévia análise clínica pode colocar em risco a condição de saúde dos demais trabalhadores. A mesma preocupação repousa na suspensão de exames periódicos, uma vez que se torna imperiosa a necessidade de acompanhamento das condições de saúde dos trabalhadores face a uma pandemia. Não é demais ponderar que a própria MP autorizou a suspensão das férias ou licenças não remuneradas dos profissionais da área de saúde ou daqueles que desempenhem funções essenciais, mediante comunicação formal da decisão ao trabalhador, por escrito ou por meio eletrônico, preferencialmente com antecedência de quarenta e oito horas (Art. 7º).
Em relação à suspensão contratual para participação de qualificação, o Presidente da República revogou o artigo 18 que previa tal medida (18 (art. 2º da Medida Provisória n. 928, de 23 de março de 2020).
Por fim, dentre as medidas previstas, os artigos 19 a 25 trazem previsões acerca do diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, suspendendo a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020, respectivamente (art. 19). Para usufruir do benefício, o empregador ou responsável deverá declarar as informações nos termos do artigo 32, inciso IV, da Lei n. 8212, de 24 de julho de 1991.
Por fim, outras questões foram tratadas na MP, e que versam sobre situações que demandam um olhar percuciente sobre seus efeitos.
A primeira é a autorização legal para que, por meio de acordo individual escrito, seja prorrogada a jornada de trabalho em estabelecimentos de saúde, mesmo para as atividades insalubres e para a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso (art. 26). A extrapolação de jornada, sem limites mínimos, gera uma exploração de mão de obra que não necessariamente atende à finalidade a que se propõe. No caso dos profissionais de saúde, a sobrecarga de trabalho pode comprometer a saúde dos próprios pacientes, dado que o excesso de jornada é acompanhado de perda de concentração do trabalhador e maior risco de acidentes. Assim, não apenas o paciente, cuja vida está aos cuidados dos profissionais de saúde, mas os próprios estão sob risco de falhas, muitas vezes irreversíveis, decorrentes do esgotamento físico-mental, incluindo a contaminação pelo coronavírus. É certo que a MP excluiu os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) das doenças ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal (Art. 29). Sendo assim, a extrapolação de jornada constitui elemento que pode confirmar o nexo de causalidade entre a contaminação e o exercício do trabalho, na maioria dos casos em que houve esgotamento físico-mental por excesso de jornada.
Dispositivo que merece destaque é o artigo 31, o qual prevê que, durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória, os Auditores Fiscais do Trabalho do Ministério da Economia atuarão de maneira orientadora, exceto quanto às seguintes irregularidades:
I – falta de registro de empregado, a partir de denúncias;
II – situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação;
III – ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e
IV – trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.
Ou seja, a norma tem prazo de aplicação, qual seja, de 180 dias a contar da publicação da MP, independentemente da manutenção do estado de calamidade pública.
Salvo as situações elencadas nos incisos acima, as demais irregularidades não poderão ser objeto de autuação durante o prazo de vigência da norma, cabendo a Auditoria Fiscal do Trabalho o exercício do caráter orientador. Ademais, a MP previu uma espécie de efeito retroativo para sua aplicação. No artigo 36, a MP dispõe que se consideram convalidadas as medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto nesta Medida Provisória, tomadas no período dos trinta dias anteriores à data de entrada em vigor desta Medida Provisória. Isto é, se algum estabelecimento de saúde, nos últimos trinta dias, prorrogou a jornada de trabalho além do limite legalmente previsto, mediante acordo individual escrito, não há como configurar irregularidade, pois tal medida está amparada pelo referido artigo 36.
Além dos efeitos sobre os contratos de trabalho previstos na CLT – incluindo os de aprendizagem -, o artigo 32 da Medida Provisória amplia os limites materiais de sua aplicação, para contratos de trabalho previstos em legislação específica, a ver trabalho temporário e prestação de serviços terceirizados (pela Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974), trabalho rural (Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973) e, no que couber, trabalho doméstico (Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015), tais como jornada, banco de horas e férias.
Também a MP previu a antecipação do pagamento do abono anual de 2020, em seus artigos 34 e 35.
O SINPAIT, por meio dessa uma breve análise do conjunto do texto da MP, visa destacar que há pontos que demandam maior atenção sobre os impactos na realidade social, especialmente a limitação à atuação da Inspeção do Trabalho, a suspensão de exames admissionais e periódicos, a extrapolação de jornada de profissionais de saúde, bem como a inversão da hierarquia de normas trabalhistas. O cuidado com os efeitos da MP, porém, não se restringe a essas questões, mas, ao apontá-las, o Sinpait ressalta a necessidade de revisões em sua redação, como a que o próprio Presidente promoveu ao se antecipar com a revogação do artigo 18 (art. 2º da Medida Provisória n. 928, de 23 de março de 2020).
Essa entidade sindical reforça a imperiosa necessidade de garantir os direitos constitucionais e a ordem do sistema juslaboral, para que a economia do país possa ser retomada em breve, com base em parâmetros de segurança jurídica e eficiência contratual, com menor custo de transação para as partes envolvidas na relação de trabalho e com maior harmonia social.