Milhares de mortos, bilhões de prejuízo: o custo humano e econômico dos acidentes de trabalho no Brasil
Rafael de Araújo Gomes, Procurador do Trabalho em Araraquara/SP
O jornal O Estado de São Paulo, em sua edição de 21 de janeiro de 2012, publicou uma importante reportagem, sob o título: “País gasta R$ 71 bi ao ano com acidente de trabalho”.
Tendo como fontes o Ministério da Saúde, o sociólogo José Pastore e a empresa de gerenciamento de riscos Marsh, o jornal alerta que o valor estimado de R$ 71 bilhões de reais de prejuízo, que inclui gastos públicos e privados, certamente encontra-se subestimado, pois leva em consideração apenas o mercado formal de trabalho no Brasil.
Ou seja, o prejuízo econômico real, ao Estado e à iniciativa privada, causado pelos acidentes de trabalho seria ainda maior. Dada a enorme quantidade de trabalhadores informais (sem carteira assinada) que existe no país (em torno de 35% do total), acredito ser justificado supor que o custo financeiro ultrapasse R$ 100 bilhões[1].
A reportagem menciona, também, que o problema está atualmente a piorar: “A retomada das obras de infraestrutura e construção imobiliária elevou o número de acidentes de trabalho que resultam em mutilações ou mortes no Brasil. Entre janeiro e outubro de 2011, pelo menos 40.779 trabalhadores foram vítimas de acidentes graves de trabalho, dos quais 1.143 morreram, segundo o Ministério da Saúde. O número é 10% maior que em igual período do ano passado (37.035)”.
As estimativas do custo financeiro dos acidentes feitas por José Pastore, que o Estadão reproduziu, já haviam sido apresentadas pelo sociólogo em palestra por ele proferida no Tribunal Superior do Trabalho, em outubro de 2011[2]:
“A sociedade brasileira paga cerca de R$ 800 bilhões de salários (dados da RAIS) e gasta R$ 71 bilhões com acidentes e doenças do trabalho – quase 9%. É uma cifra ainda mais estratosférica e que mais do que justifica um esforço adicional de prevenção.
Nota: Esse custo está subestimado porque se refere apenas ao setor formal do mercado de trabalho. Pelo sistema do SUS, que é universal, o Brasil atende um grande número de pessoas que se acidentam e adoecem no mercado informal cujas despesas correm por conta do Ministério da Saúde e não da Previdência Social.”
Para fins de comparação: o valor do prejuízo, estimado de forma conservadora em R$ 71 bilhões, é só um pouco menor que todo o gasto com saúde previsto no orçamento da União Federal em 2011 (incluindo as despesas com o SUS), que foi de R$ 77 bilhões. O valor é superior aos lucros somados da Vale do Rio Doce e da Petrobras, as duas maiores e mais lucrativas empresas brasileiras, em 2011.
De acordo com o último Anuário Estatístico da Previdência Social, relativo a 2010, ocorreram naquele ano no Brasil 701.496 acidentes de trabalho. Os acidentes fatais vitimaram 2.712 pessoas, 11,4% a mais do que no ano de 2009.
Esses dados oficiais reproduzem, entretanto, apenas parte da quantidade real de acidentes e mortes ocorridos, pois muitas ocorrências não são comunicadas e não são reconhecidas como relacionadas ao trabalho. A subnotificação de acidentes tem diminuído nos últimos anos, desde a adoção do nexo técnico epidemiológico, em 2007, mas ainda persiste em patamares elevados[3].
Todos esses números, apesar de impressionantes, não conseguem dar conta, ainda mais se lidos apressadamente, da real dimensão da tragédia humana que se esconde por trás deles, ou do sofrimento implicado.
Na condição de procurador do trabalho, estive em certa ocasião na casa de um trabalhador, que havia morrido no frigorífico em que trabalhava, poucos dias após o acidente, para ouvir como testemunhas a esposa e os pais do rapaz. O eletricista havia deixado um filho de apenas dois anos de idade, que provavelmente não terá lembranças de primeira mão do pai, em razão da pouca idade. A esposa parecia ainda não acreditar no que tinha acontecido.
Se é difícil ver a dor de quem perdeu um ente querido, que foi trabalhar e nunca mais voltou, experimentar tal dor há de ser quase insuportável.
Portanto tem toda razão Pastore quando disse, na mesma palestra, que: “Uma nota de cautela: os seres humanos valem muito mais do que todos esses cálculos. A vida é um bem de crucial importância para uma sociedade civilizada. A dimensão humana não pode ser matematizada. Ela é a razão de ser de todo o nosso esforço.”
Curiosamente, entretanto, o José Pastore que nos traz o alerta sobre o custo financeiro e humano dos acidentes de trabalho é o mesmo sociólogo que defende, em todas as oportunidades que tem, a “flexibilização” (quer dizer, eliminação) da legislação trabalhista, inclusive de normas protetivas da saúde e segurança no trabalho. Veja-se, por exemplo, a seguinte declaração pregressa sua[4]:
“No campo das contra-marchas deve-se citar ainda a multiplicação de Normas Regulamentadoras na área de higiene e segurança do trabalho que, no fundo, acabam onerando o custo do fator trabalho pela imposição de médicos em tempo integral, equipamentos, uniformes, proteções ambientais etc. (NRs 7, 8 e 18) e enrijecendo as negociações.”
Tal pensamento está em sintonia com as ideias da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que em sua Agenda Legislativa defende que[5]:
“A lei deve dar ênfase a uma fiscalização mais orientadora que punitiva, estimulando a cooperação entre empregados e empregadores na busca por segurança e saúde no ambiente de trabalho.
(…)
É também necessário restringir a extensa regulação existente a normas essenciais, privilegiando a negociação coletiva, capaz de atender com eficácia as questões específicas de cada setor.”
No plano dos discursos e das boas intenções, todos concordarão quanto à necessidade de prevenir acidentes e evitar mortes. Para além da oratória, entretanto, a realidade é que não há como assegurar a vida e a saúde dos trabalhadores sem que haja médicos, equipamentos, uniformes e proteções ambientais, dos quais reclama Pastore e grande parte do empresariado.
Investir em saúde e segurança no trabalho implica em custos, por vezes elevados, isso é um fato. Aliás, qualquer tipo de investimento, inclusive na ampliação da capacidade produtiva, quando visto a partir de uma perspectiva limitada e pensando-se apenas no dia de hoje, é um custo, é “prejuízo”, portanto “um mal”. Por outro lado, os mesmos investimentos, sob a perspectiva do amanhã, são o meio necessário para se obter ganhos maiores no futuro. No caso dos investimentos em segurança, os ganhos são proporcionados pela prevenção de gastos relacionados a acidentes, tais como interrupção da produção por várias horas ou mesmo dias, pagamento de indenizações, absenteísmo, etc.
A suposição de que é possível substituir normas de saúde e segurança por “cooperação” e “negociação” é ilusória. Cooperação, por relevante que seja, não irá evitar que o operário, trabalhando a trinta metros de altura do solo, venha a morrer se cair de lá. Só o cinto de segurança, preso em apoio firme, e a proteção guarda-corpo é que impedirão o óbito. Da mesma forma, nenhuma “negociação” para suprimir ou limitar a aplicação de uma Norma Regulamentadora, com redução dos custos do trabalho, irá impedir que os dedos e as mãos de um operador de serra circular desprovida de coifa e cutelo sejam decepados.
No plano das abstrações, talvez cheguem a impressionar tais apelos à cooperação, à negociação, à “flexibilização” e à “redução do custo do trabalho” ou “custo Brasil”. Afinal, quem pode ser contra a cooperação? E o termo “flexibilizar” soa moderno aos ouvidos, é uma palavra sedutora. Mas acidentes de trabalho, e particularmente acidentes fatais, não se dão no plano das abstrações, nem são evitados apenas com boas intenções ou com palavras da moda. Cada uma das 2.712 mortes que ocorreram em 2010 foi causada por circunstâncias bastante concretas, e na esmagadora maioria dos casos (estimo que em mais do que 95% deles[6]), fez-se presente o descumprimento, em maior ou menor grau, de normas de saúde e segurança no trabalho.
No caso real que mencionei acima, do eletricista morto em frigorífico, as circunstâncias relacionadas com a sua morte foram as seguintes, segundo as testemunhas ouvidas pelo Ministério Público:
“…que [A] estava trabalhando com a solda, sem luvas, capacete ou cinto de segurança. Que [A] sofreu um choque e ficou grudado nas ferragens, duro, até que [B] puxasse o cabo de força. Que nesse instante [A] caiu e bateu com a cabeça no chão. Que [A] reclamava com freqüência para a depoente a falta de equipamentos de proteção. [A] reclamava que sequer fita isolante era disponibilizada. Que nos próximos dias [A] ia assumir cargo na CIPA, para o qual fora eleito, e lhe disse que iria cobrar a disponibilização de proteção. Que há um mês [A] sofreu acidente, trabalhando sem luvas de proteção, tendo perdido a unha de um dos dedos da mão.”
“Que [A] vinha trabalhando, em janeiro e fevereiro deste ano, em média de 13 a 14 horas, bem como sábados e domingos. Que [A] entrava às 6 horas e trabalhava até o abate acabar. Que [A] trabalhava inclusive aos feriados”.
Veja-se que, nesse caso, não se tratava de uma microempresa cujo proprietário não possui conhecimentos e não recebeu a necessária orientação prevencionista. Tratava-se de uma grande empresa da indústria da carne, com inúmeras unidades fabris e milhares de empregados. Não faltou à empresa receber mais cooperação de seus empregados, ou mais negociação com o sindicato dos trabalhadores, ou mais orientação por parte do serviço de inspeção (a empresa já havia sido submetida a várias ações fiscais em anos anteriores, e ainda assim não havia corrigido os seus problemas). O que faltou foi disponibilizar ao eletricista luvas de proteção e uma máquina dotada de aterramento elétrico. Apenas isso. Mas como se preferiu economizar em segurança (outros diriam: “preferiu-se não onerar o custo do fator trabalho”), um trabalhador morreu, um filho jamais se lembrará do pai, e uma família ficou desamparada.
Vejamos outras situações concretas que envolveram morte do trabalhador, relacionadas na publicação “Análise de acidentes do trabalho fatais no Rio Grande do Sul[7]”:
“Ao realizar reparo em telhado de armazém portuário, a telha cedeu ao peso do trabalhador. Não havia equipamentos de proteção ou medidas que permitissem a movimentação segura do trabalhador. Ele caiu e faleceu.”
“Ao sair do andaime, o trabalhador caiu no vão entre o equipamento e a parede do edifício. Não havia cabo independente para fixação do cinto”.
“O trabalhador estava concretando pilares no décimo pavimento do edifício, junto à periferia da construção. Não havia guarda-corpo; concentrado na tarefa, o trabalhador chegou muito perto da borda e caiu. Não havia linha de vida nem cinto de segurança”.
“O trabalhador foi atingido por chapa de aço carbono com cerca de 400kg, que estava armazenada de forma instável no setor de caldeiraria”.
“O trabalhador foi atingido na cabeça por chapas metálicas de grandes dimensões, que estavam de forma instável apoiadas em setor de armazenagem”.
“O trabalhador foi atingido por carrinho de mão que caiu de elevador de materiais. Não havia isolamento da área do elevador e não havia dispositivos que impedissem a queda de materiais do elevador”.
“O trabalhador teve a gola da roupa presa entre a polia do motor e o eixo de elevador de grãos. Não havia dispositivos de isolamento dessas estruturas. O acidente produziu o estrangulamento do trabalhador”.
“Trabalhador recebeu choque elétrico ao acionar a roda da betoneira. Ao cair, desmaiado, a betoneira virou por cima do trabalhador, derramando concreto fresco sobre a boca e o nariz da vítima”.
“O trabalhador limpava betoneira elétrica que não tinha aterramento, ao fim de dia de trabalho, quando recebeu choque elétrico”.
“Ao operar bomba elétrica, não-aterrada e defeituosa, para esvaziar poço de visita em canteiro de obras, trabalhador recebeu choque elétrico”.
“O trabalhador realizava a substituição da rede elétrica de setor de fábrica, quando recebeu choque de 220V. Não usava equipamento de proteção”.
“O trabalhador desapareceu dentro da massa de grãos de cevada, ao entrar em silo cheio, por abertura superior, para realizar trabalho de manutenção (vedação) de chapas internas da edificação. Seu corpo foi encontrado após ser esvaziado o silo”.
“Os trabalhadores tentavam desobstruir duto onde escorria chorume de aterro sanitário. Sucessivamente, cada um dos trabalhadores desceu por escada improvisada dentro do duto e desmaiou. Dois morreram”.
“Três trabalhadores preparavam formas para concretagem de pilares de edifício em construção, próximo a talude que desmoronou e soterrou-os. Um dos trabalhadores faleceu”.
“A vítima, com 17 anos de idade, foi contratada como empacotador. No dia do acidente, foi-lhe solicitada ajuda no açougue, onde lhe foi designado operar a máquina de moer carne. Durante tal atividade, o menino introduziu a mão esquerda no interior do equipamento, até atingir a rosca sem fim, sendo sua mão triturada e amputada”.
“O trabalhador, com 17 anos de idade, no segundo dia de trabalho, estava auxiliando na tarefa de colocação de roupas em centrífuga de lavanderia. O equipamento não tinha tampa e puxou o braço da vítima. Com a torção, o braço foi arrancado”.
“A vítima, com 17 anos de idade, estava atravessando a área de queda de árvore que estava sendo cortada por motoserra em empresa de exploração florestal. O tronco cortado atingiu a cabeça do trabalhador, produzindo traumatismo crânio-encefálico e óbito”.
Em todos esses casos, o resultado morte ocorreu porque foram descumpridas, pelo empregador, as normas legais de saúde e segurança no trabalho. Equipamentos de proteção coletiva não foram instalados, equipamentos de proteção individual não foram disponibilizados, máquinas defeituosas não foram consertadas, trabalhadores não foram treinados para realizar suas funções com segurança (ou deles se exigiu trabalho em desvio de função), as tarefas em atividades e locais de notório risco não foram planejadas. Nenhuma dessas situações teria sido evitada com maior “cooperação” ou “negociação”.
Ao contrário do que sustenta José Pastore e a CNI, não temos normas de saúde e segurança em excesso, ou demasiadamente extensas. As normas que existem são necessárias, o problema brasileiro é que elas não são cumpridas.
A Norma Regulamentadora n. 18, por exemplo, que dispõe sobre o meio ambiente de trabalho na indústria da construção, é certamente extensa. Mas não é exageradamente extensa, ou injustificadamente extensa. O seu tamanho é por inteiro explicado pelas peculiaridades técnicas envolvidas na construção civil, e pelas situações de grande risco que quotidianamente aparecem em um canteiro de obras.
Reclamar que a NR 18 é extensa demais, e por isso tem que ser “flexibilizada” (leia-se suprimida, em todo ou em parte), não é diferente de reclamar que o manual de um equipamento de informática, por exemplo, é extenso demais e difícil de ler. Ora, o manual não é volumoso por um capricho do fabricante, mas sim porque as características técnicas e funcionalidades do produto são complexas, em razão da tecnologia avançada envolvida, e não pode ser tudo comodamente explicado em poucas linhas.
Da mesma forma, as técnicas prevencionistas a serem empregadas na construção civil são complexas porque a atividade em si é perigosa, os riscos envolvidos são numerosos, não podendo ser desprezados sem prejuízo à vida humana. O descumprimento de um item bastante específico da NR pode ser a diferença, por exemplo, entre um dispositivo de segurança ser capaz de suportar o peso do trabalhador em caso de queda involuntária, ou romper-se quando submetido a tal pressão, por não possuir características apropriadas para esse tipo de uso.
A tendência “flexibilizadora” de normas de saúde e segurança, e a ênfase nos “custos do trabalho”, ao invés da proteção à vida, ilustram a perfeição o motivo pelo qual, no Brasil, gasta-se dezenas de bilhões de reais com os prejuízos causados por acidentes de trabalho. É também graças a tal tipo de mentalidade que morre milhares de trabalhadores por ano no país. Os 2.712 óbitos de 2010 e os R$ 71 bilhões de prejuízo não foram causados por falta de “cooperação” ou de “negociação”, e tampouco foram provocados por “normas trabalhistas arcaicas”. Os acidentes ocorrem na maioria dos casos porque as normas que existem, que são necessárias, não são cumpridas, sendo a opção de muitos economizar a investir em segurança.
A situação dos trabalhadores terceirizados, em particular, é uma das que melhor ilustram a profunda contradição existente no Brasil entre o discurso (em tese) bem intencionado de redução de acidentes, e a prática precarizante de tudo terceirizar, com deterioração do meio ambiente de trabalho, o que conduz a mais mortes e mais acidentes.
Como bem lembrou Sebastião Caixeta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, por ocasião da audiência pública realizada pelo TST, em outubro de 2011, sobre o tema terceirização: “De cada cinco mortes em empresas, quatro são de trabalhadores terceirizados e em cada dez acidentes de trabalho, oito são registrados em empresas terceirizadas. Não há como se contestar que existe um desrespeito em relação ao meio ambiente de trabalho dos terceirizados”[8].
As mortes de trabalhadores terceirizados na Petrobras é um dos exemplos mais vívidos de tal realidade. Conforme levantamento da Federação Única dos Petroleiros, divulgado em agosto de 2011, 300 petroleiros morreram na Petrobras nos últimos 16 anos (média de mais de 18 mortos por ano), dos quais 233 eram terceirizados (quase 80% do total). Tal informação foi tornada pública pouco depois de 19 de agosto de 2011, dia em que 5 trabalhadores morreram na empresa, em dois acidentes diferentes.
Em meu livro “Precarizar para crescer?[9]”, comento o caso concreto de uma grande empresa que optou por “primeirizar” (quer dizer, reverter a terceirização, voltando a realizar as tarefas produtivas mediante funcionários próprios, e não terceirizados), sendo que um dos motivos que levaram a empresa a tal decisão foi o seguinte:
“Outro ponto considerado na avaliação da terceirização realizada pela (X), é que os trabalhadores terceirizados são considerados mais ‘suscetíveis’ a acidentes de trabalho e a afastamentos por doenças ocupacionais. Essa informação foi confirmada em entrevistas com os representantes da empresa, que buscavam a redução de acidentes de trabalho na empresa com a reintegração.
(…)
As estatísticas da empresa sobre acidentes de trabalho revelam que o número de acidentes com os funcionários terceirizados tem sido consideravelmente superior aos acidentes com funcionários efetivos da (X)”.
Tais circunstâncias, que recomendam redobrada cautela com as terceirizações, dada a evidência de que os trabalhadores terceirizados estão muito mais expostos a acidentes de trabalho e mortes, vem sendo simplesmente desconsideradas no Brasil, e no Congresso Nacional mais do que em outros lugares. Basta ver que no final de 2011 foi aprovado por uma comissão especial da Câmara um substitutivo ao projeto de lei n. 4.330/2004, de autoria do deputado Sandro Mabel, destinado a autorizar de forma quase irrestrita as terceirizações[10], reduzindo a responsabilidade das empresas tomadoras pelos problemas trabalhistas que ocorrerem, inclusive com relação a acidentes sofridos pelos terceirizados.
Também aqui vemos, de forma clara, o fosso existente entre o discurso de boas intenções, limitado ao plano da oratória, e a prática de estímulo à supressão de normas de saúde e segurança, com o encorajamento de situações que permitem e favorecem a ocorrência de acidentes de trabalho em número tão elevado.
Mas se a intenção é causar precarização, a triste realidade é que projetos de lei assim já se tornaram, ao menos no que diz respeito ao cumprimento de normas de saúde e segurança, sumamente desnecessários. Afinal, já vem ocorrendo no país, mesmo antes da aprovação de reformas trabalhistas “flexibilizadoras” (eliminadoras) de direitos, muita flexibilização na prática, através do puro e simples descumprimento da lei, não punido com qualquer sanção. Trata-se de um tipo de “flexibilização” que encontra espaço graças à contínua perda da capacidade do Estado de flagrar e reprimir as violações trabalhistas.
A crescente diminuição da atividade de fiscalização[11], em um país no qual os danos causados pelos acidentes já atingiram proporções calamitosas, deveria ser fato reconhecido como um escândalo nacional, e motivo de indignação generalizada. Ao revés, o que se vê é que o desmantelamento do serviço de inspeção do trabalho na área de saúde e segurança avança há anos sem parar, de forma silenciosa, situação que é imposta aos auditores-fiscais do setor pelo Governo Federal e pela cúpula do Ministério do Trabalho e Emprego.
Poucos cidadãos sabem de tal realidade, poucos sindicatos reclamam, nenhuma entidade patronal e nenhum pesquisador a elas vinculado denuncia o fato[12], Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho não se envolvem, enfim, há quase uma conspiração de silêncio em torno do tema.
De forma corajosa, o auditor-fiscal do trabalho Luiz Alfredo Scienza abordou o problema em seu recente artigo “Saúde e segurança no trabalho: por que desistimos?[13]”:
“É consenso o progressivo desmonte da área de segurança e saúde no Ministério do Trabalho e Emprego, inclusive além muros de nossa instituição. Alguns indagam como não fomos capazes de valorar de forma adequada o seu significado. Outros observam o quadro com olhos de cobiça e oportunidade. É inegável, nos recusamos a perceber a sua importância estratégica, a sua imprescindibilidade para uma inspeção do trabalho viável. Abrimos mão da tutela de um bem perene, maior, internacionalmente reconhecido, um universo complexo de dados e informações em constante interação e mutação. Ao apostarmos em um modelo que passa ao largo do estado da arte e apenas tangencia as questões de segurança e saúde, também esquecemos que os determinantes sociais que levam ao acidente, à doença e ao nexo com o trabalho não são sentenças transitadas em julgado. O Estado pode intervir, nós podemos fazer a diferença. Em muitas situações, temos a divina graça de poder retardar a marcha inexorável para morte. E o retorno de um íntegro pai ao seu lar como recompensa maior, o lenitivo para dificuldades e incompreensões.
(…)
A aparentemente omissa posição de nossa instituição no tocante à segurança e saúde dos trabalhadores é novamente demonstrada pela presença de apenas 01 (um) projeto nacional obrigatório, tipicamente de SST, para 2012: a análise de acidentes. Apenas um, entre outros. Apenas um, entre pérolas de escasso brilho. Apenas um, entre procedimentos administrativos transmutados em projetos. Não desconheço as suas interfaces com as questões de SST, mas seriam estas as nossas verdadeiras prioridades institucionais? Seriam as demandas sociais que clamam pela intervenção do Estado? Estaríamos diante dos nossos maiores desafios?
As respostas a estas questões estruturais têm sido jogadas ao vento. Os projetos nacionais parecem refletir apenas a busca por uma improvável zona de conforto, a predileção por estatísticas ocas e por arquétipos desconexos das reais necessidades da população que trabalha. E talvez a opção por minimizar o enfrentamento com os reais detentores do poder político e econômico. Infelizmente, são hipóteses que convergem para a insignificância, para a priorização do acessório. Auditorias reais em SST, ainda minoritárias no MTE, possuem um imenso potencial de provocar, mudar, transformar, priorizar a vida. Logicamente, geram resistências dos que obtém altos lucros com ambientes e organizações degradados. As centenas de mortes e mutilações de trabalhadores ocorridas nos últimos anos, decorrentes de sua inserção em sistemas sócio-técnicos agressivos, sob bases tecnológicas arcaicas, parecem não merecer qualquer prioridade. Bases que subsistem matando e lesando com a validação do MTE, como recentemente foi sobejamente demonstrado no inacreditável vai-e-vem de portarias e interesses envolvendo os elevadores de obra tracionados a cabo. Ou à permissão para mutilar concedida a prensas mecânicas excêntricas de engate tipo chaveta e dobradeiras de cinta, pela nova Norma Regulamentadora nº 12. Sim, temos muitos problemas e contradições. E uma predileção por não discutirmos o essencial. Como a insana opção por abrirmos mão da tutela de um bem perene: a segurança e a saúde de quem trabalha.”
Tal precariedade imposta ao serviço de inspeção redundará, inevitavelmente, em prejuízo também à atuação do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, impedindo que muitos casos de violações graves, com exposição de trabalhadores a risco sério e imediato de morte, venham a ser reprimidos como deveriam. Com isso, vidas deixarão de ser salvas. Afinal, não terão procuradores[14] e juízes do trabalho como suprir adequadamente a carência da atividade de inspeção do trabalho em matéria de saúde e segurança, e ainda desempenhar a contento suas atribuições precípuas.
Nenhuma “cooperação” ou “negociação” substituirá a importância da inspeção na empresa, que precisa se fazer presente – através de profissionais tecnicamente qualificados, médicos e engenheiros do trabalho – nos locais onde trabalham os operários, para identificação dos riscos reais que podem levar a acidentes e a mortes.
Afinal, normas de segurança que não são objeto de fiscalização efetiva transformam-se em letra morta de lei e não serão cumpridas, dada a tentação patronal de economizar em meio ambiente do trabalho, permitindo o avanço dos acidentes e dos custos por eles acarretados. Trata-se de um auto-engano, pois a ilusória economia de hoje traduz-se em prejuízos maiores mais tarde, mas isso não diminui a frequência com que é cometido.
Ademais, a “economia” que o Estado obtém, ao ceder às pressões do poder econômico, mantendo subdimensionado o número de auditores-fiscais do trabalho[15], deixando de contratar como auditores médicos e engenheiros, e em termos práticos implodindo o setor de segurança e saúde da inspeção, converter-se-á em prejuízos da ordem de dezenas de bilhões de reais, seja através da Previdência Social, seja através do SUS.
A verdade é que investir em prevenção de agravos à saúde é a forma mais segura que há de se reduzir os multibilionários gastos públicos com o tratamento e a assistência social devidos aos acidentados e às famílias dos trabalhadores mortos.
Apelos à substituição da atividade de fiscalização e da aplicação de normas técnicas pela “negociação”, “cooperação” e “flexibilização” merecem ser vistos como meras desculpas, não havendo nessas manifestações qualquer compromisso com o real e necessário enfrentamento do problema. Palavras vazias e discursos bem intencionados, mas que nunca ultrapassam a esfera do discurso, e que nunca se dirigem às causas dos problemas, não salvarão a vida de um trabalhador sequer.
Em suma, sem inspeção nos locais de trabalho, seguida, nos casos de empregadores mais renitentes em cumprir a lei, da atuação do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, não haverá prevenção de acidentes, e tampouco haverá redução do número de mortes e do montante do prejuízo financeiro público e privado.
O caminho para a redução do enorme custo humano e econômico dos acidentes de trabalho, portanto, é claro: investimento em prevenção, cumprimento das normas de saúde e segurança, fortalecimento da atividade de fiscalização. Exatamente o oposto do que estamos a fazer no Brasil nos dias de hoje.
[1] Veja-se, a propósito, a seguinte notícia: “Pesquisa da Universidade Federal da Bahia (UFBA) constatou que mais de 70% dos trabalhadores que precisaram de tratamento médico por causa de acidentes de trabalho na capital baiana em 2000, 2002 e 2004 foram atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O levantamento, financiado pelo Ministério da Saúde para suprir a falta de dados sobre acidentes de trabalho, acompanhou a vida de 9,5 mil trabalhadores de Salvador no período e mostrou que 628 deles sofreram algum acidente de trabalho nos 12 meses anteriores à entrevista. Dos 311 acidentados que necessitaram de tratamento médico depois dos primeiros socorros, 75,6% foram atendidos na rede pública de saúde. (…) Juntos, empresas e planos de saúde (muitas vezes contratados por elas) custearam menos de 20% dos tratamentos realizados, enquanto 5,3% deles foram pagos pelos próprios trabalhadores. Segundo Vilma Santana, coordenadora da pequisa e do Programa Integrado de Saúde Ambiental e do Trabalhador da UFBA, os dados confirmam evidências de que o poder público tem arcado com os custos gerados por acidentes em ambientes privados.” Em <http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=826819&t=Menos+de+20+de+gastos+com+acidentes+de+trabalho+sao+pagos+por+empregadores+em+Salvador>
[2] Em <http://www.josepastore.com.br/artigos/rt/rt_320.htm>
[3] Estimava-se, até recentemente, que a subnotificação atingisse entre 80% a 95% (variação de uma pesquisa a outra) dos casos, ou seja, apenas de 20% a 5% dos acidentes seriam comunicados pelos empregadores.
[4] Em <http://www.josepastore.com.br/artigos/rt/rt_094.htm>
[5] Em <http://agendalegislativa.cni.org.br/portal/main.jsp?lumChannelId=FF8080812ED8ED4E012EE2ECF26B7AE6>
[6] Em todos os acidentes fatais que analisei, até hoje, o óbito sempre esteve relacionado a violações às normas, tendo sido comuns a negligência e a franca indiferença para com o risco de morte.
[7] Porto Alegre: Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Sul. Seção de Segurança e Saúde do Trabalhador/SEGUR, 2008.
[8] Em <http://anpt.jusbrasil.com.br/noticias/2872515/nao-ha-como-contestar-que-existe-desrespeito-ao-meio-ambiente-de-trabalho-dos-terceirizados>
[9] Disponível em <http://www.anpt.org.br/galeria/anpt/Precarizar_para_crescer_1.pdf>
[10] O projeto permite, por exemplo, que uma empresa terceirize todos os seus postos de trabalho, se quiser, não permanecendo com qualquer empregado próprio.
[11] Um recente relatório da OIT (“Informe V: administração do trabalho e inspeção do trabalho”), elaborado por ocasião da última conferência internacional do trabalho, em 2011, apresenta os seguintes dados sobre a inspeção do trabalho no Brasil, referentes ao período de 2007 a 2009: houve redução de 21,8% no número de ações de fiscalização, redução de 7% no número de auditores, e redução de 15,9% no número de ações por auditor.
[12] O que conduzirá ao aumento dos prejuízos, inclusive financeiros, ao setor privado, além de favorecimento à concorrência desleal entre as empresas.
[13] Disponível em <www.agitra.org.br/noticias.cfm?nt=7832>
[14] Acrescente-se que o Ministério Público do Trabalho experimenta, no âmbito do Ministério Público da União, profunda carência de servidores, em particular de analistas especializados em medicina e engenharia do trabalho, capazes de subsidiar com conhecimentos técnicos a atuação dos procuradores do trabalho. Também aqui se constata a omissão do Estado em proporcionar os recursos e instrumentos que seriam capazes de reduzir a quantidade de acidentes e mortes, pelo fomento à prevenção e à repressão eficazes.
[15] Sobre tal questão, propôs o Ministério Público Federal, em 2011, uma ação civil pública, com pedido de que a União Federal mantenha quadro de auditores minimamente compatível com as necessidades do serviço.
Colaboração Geraldina Inez – AFT-RS