Renato Bignami*
Eppur si muove …
Galileu Galilei após abjurar de sua visão heliocêntrica do mundo diante da condenação imposta pelo Tribunal da Santa Inquisição
Inspirado pela sutil, leve e profunda doutrina do professor da Universidade de Bolonha Umberto Romagnoli, que tão bem sabe decifrar os enigmas do Direito do Trabalho atual e escreveu há pouco a belíssima “Carta aberta ao jurista do trabalho” , dirijo-me agora aos meus colegas para falar sobre nossa tão nobre e complexa profissão. Faço-o, talvez, de modo não tão sutil e leve como o grande mestre, mas procuro dedicar o máximo de seriedade que uma missiva dessas requer, notadamente em dias de precarização e risco iminente ao exercício de nossas funções.
O Professor Romagnoli, preocupado com os temas atuais do Direito do Trabalho tais como a intensa globalização dos mercados, a busca incessante pelo aumento da produtividade, o desemprego galopante e o (in)consequente debate sobre a flexibilização das relações de trabalho com o surgimento de novas formas atípicas de contrato bem como seu impacto na definição atual da sociedade e a volatilidade do direito trabalhista em um mundo que muda a cada minuto, externa toda a sua preocupação pela dificuldade de exercer uma profissão, a de jurista do trabalho, dentro desse contexto.
Essa dificuldade alcança níveis exorbitantes quando recorda acontecimentos extremos como as mortes violentas de professores da monta de Massimo D’Antona, consultor do Ministério do Trabalho italiano e docente de Direito do Trabalho da Università degli studi di Roma “La Sapienza”, brutalmente assassinado no dia 20 de maio de 1999 pelas Brigadas Vermelhas, assim como Marco Biagi, considerado um dos melhores juslaboralistas italianos e covardemente abatido no dia 19 de março de 2002 pelo mesmo grupo esquerdista. Antes deles as Brigadas Vermelhas já tinham um triste e macabro histórico de atentados, dentre os quais o que quase cobrou a vida do catedrático Gino Giugni, considerado o “pai” do “Statuto dei Lavoratori”, em 6 de maio de 1983 na cidade de Roma.
A utilização do funesto recurso do atentado à vida de juristas e operadores do Direito do Trabalho não está, de forma alguma, restrita a determinada região, sistema político-econômico ou profissão do planeta. Na Espanha salta aos olhos a conhecida “matanza de Atocha”, que nada tem a ver com o recente ataque terrorista à famosa estação de trem madrilenha e sim com a chacina perpetrada na noite de 24 de janeiro de 1977 por agentes da extrema direita franquista, em que morreram os advogados trabalhistas Enrique Valdevira Ibáñez, Luis Javier Benavides Orgaz e Francisco Javier Sauquillo Pérez del Arco, o estudante de direito Serafín Holgado de Antonio e o administrativo Angel Rodríguez Leal. Mais recentemente, lamentou-se profundamente a morte do renomado juslaboralista e magistrado do Tribunal Supremo espanhol Rafael Martinez Emperador, asassinado por um disparo de bala do grupo nacional-separatista ETA ao chegar no porteiro automático de sua residência, em 10 de fevereiro de 1997.
Na França, o duplo homicídio dos inspetores do trabalho Daniel Buffiére e Sylvie Trémouille em 2 de setembro de 2004, fato inédito nos 112 anos da história da Inspeção do Trabalho francesa, maculou a longa tradição democrática no campo dos direitos fundamentais do homem e do cidadão daquele país. O crime perpetrado por um rico e poderoso ruralista de Saussignac, no Departamento de Dordogne, buscava calar aqueles agentes do Estado no seu mister de fiscalização do recorrente trabalho ilegal de safristas daquele bonito rincão.
No Brasil, ainda grita forte o cruel assassinato dos auditores-fiscais do trabalho João Batista Soares Lage, Eratóstenes de Almeida Gonçalves e Nelson José da Silva e do motorista do Ministério do Trabalho Aílton Pereira de Oliveira. Estes servidores do Estado, ao sair para mais um dia de árduo trabalho de campo na manhã do dia 28 de janeiro de 2004 foram covardemente tomados em emboscada e cruelmente assassinados por pistoleiros de aluguel contratados por ricos e poderosos ruralistas em um trevo conhecido como Sete Placas, na rodovia MG-188, que dá acesso aos municípios de Unaí, Bonfinópolis de Minas e Paracatu.
Qualquer semelhança entre as duas histórias é mera coincidência. Aliás, as coincidências não param por aí e vão muito além da diferença entre uma ameixa e um grão de feijão, culturas inspecionadas em um e no outro caso. Na França, acabou no último dia 9 de março o juízo do fazendeiro Claude Duviau que foi final e exemplarmente condenado a 30 anos de reclusão pelo assassinato dos inspetores. No Brasil os assassinos e seus mandantes ainda não foram julgados. Em ambos os casos, os acusados são poderosos fazendeiros que vinham explorando ilegalmente seus trabalhadores rurais em uma relação à qual podemos chamar de escravidão moderna. Na França, desde que ocorreu o crime, a mobilização foi intensa e já se realizaram um documentário e uma peça de teatro. Também foi lançado um livro contando os detalhes dessa triste história.
Infelizmente essa lista não é restritiva e seguramente outros nomes poderiam ser agregados. Nomes de profissionais que pelo simples fato de lidarem de uma forma ou de outra com o Direito do Trabalho pagaram com a própria vida o fardo de defenderem uma ordem jurídica democraticamente estatuída, porém socialmente rejeitada por diversos setores da sociedade. Também não listamos aqui, por absoluta falta de espaço, os inúmeros trabalhadores escravizados, torturados e assassinados por reivindicarem nada mais que o direito a uma vida mais digna que o regime de servidão, em qualquer de suas manifestações, pode oferecer.
Sofrendo ataques da direita, da esquerda, do centro, dos nacionalistas, de empresários e até mesmo dos trabalhadores, o profissional que lida com o Direito do Trabalho está à mercê de um mundo em constante mutação, espremido entre a força do capital, o poder do capitalista e a insurgência da massa de trabalhadores. O auditor-fiscal do trabalho, por encarnar a figura do Estado na sua forma mais invasiva, com sua presença constante dentro do ambiente de trabalho, seguramente é o mais vulnerável dos operadores desse ramo do direito.
Por outro lado, o poder muitas vezes personificado no próprio Estado-patrão do auditor, também pressiona para soluções nem sempre calcadas no princípio da legalidade. Pressiona quando não garante os meios adequados para o cumprimento do mister da Inspeção. Pressiona quando põe em risco o pagamento dos vencimentos dos auditores-fiscais do trabalho que correm atrás de uma produtividade baseada numa maior arrecadação para os fundos do Estado, imposta por metas traduzidas em uma equação de difícil compreensão e solução. Pressiona quando mantém o eterno terrorismo da precariedade normativa de uma carreira pendurada e eternamente dependente da arrecadação do Fisco nacional.
São todas manifestações de uma violência simbólica que diariamente torna a vida do auditor uma aventura e uma experiência que se permeia de uma intensidade e um sabor próprios. A sensação de solidão quixotesca a lutar contra infindáveis moinhos de vento parece permear a profissão em todos os locais onde ela é exercida. Tranquilidade, serenidade e equilíbrio são palavras que devem constar do vocabulário diário de todo auditor-fiscal do trabalho, ainda mais quando os atores sociais insistam em projetar a figura desse agente público como a figura exponente de uma determinada política de governo. Não raramente os auditores são confundidos como agentes de uma resistência ilegítima a toda e qualquer modernização nas relações patrão-empregado, sob o viés patronal, ou, ao invés, sob uma perspectiva sindical, um agente mesmo dessa pretensa e injusta modernização a oprimir as classes trabalhadoras. Infelizmente, às vezes esses mesmos atores sociais partem para as vias de fato, ameaçando ou colocando em perigo a integridade física do auditor .
Mas ao auditor-fiscal do trabalho não está reservado apenas o nobre papel de amortecedor desses pequenos, cotidianos e corriqueiros conflitos sociais. Mais imediato é o papel de garantidor da aplicação do Direito do Trabalho em toda sua integridade. À Inspeção do Trabalho cabe a dupla missão de prevenir o conflito do trabalho e punir o infrator. Nesse contexto, o auto de infração vale mais pelo que contém em seu histórico que pelo seu potencial punitivo, já que as multas são normalmente de pequena monta e raramente executáveis pela Fazenda Nacional. Importante ressaltar também que até mesmo quando está punindo, a Inspeção do Trabalho está educando o infrator e prevenindo o conflito do trabalho, pois através da lavratura do auto de infração dá-se início ao processo das multas administrativas e por meio do exercício do ius puniendi estatal espera-se, em última análise, que aquele infrator não volte a praticar o mesmo ato ilícito e se enquadre dentro do prescrito na lei .
Assim, a missão da Inspeção do Trabalho pode-se resumir em três princípios básicos , elementares e pétreos, pois não se pode alterar seu conteúdo sem se correr o risco de adulterar-se por completo sua identidade, colocando em risco o controle estatal sobre o inteiro mercado de trabalho com as mais funestas consequências que podem advir desse caos social:
– Velar pela aplicação da legislação trabalhista;
– Orientar empregadores e trabalhadores quanto ao cumprimento da legislação trabalhista;
– Noticiar às autoridades competentes qualquer abuso que não esteja abrangido pela legislação em vigor.
E para cumprir integralmente essa missão, ao auditor-fiscal do trabalho deve-se garantir total e irrestrita independência. Independência essa essencial para que o trabalho desse agente estatal da maior importância possa ser efetuado dentro da melhor técnica e profissionalidade, e sem as quais difícil mister é alcançar o grau de excelência necessário para afrontar as situações cada vez mais comuns e complexas que a inserção de determinada região dentro do fast track capitalista nessa nova ordem mundial globalizada apresenta. A modo de classificação, e dentre tantas que poderíamos adotar, pode-se dizer que essa independência se consubstancia em :
– Independência em face das influências interiores – no tocante à relação entre os agentes de execução (auditores-fiscais do trabalho) e os agentes de direção (cargos de direção da Administração Pública do Trabalho, tanto em nível regional quanto central);
– Independência em face das influências exteriores indevidas – no tocante, principalmente, às organizações sindicais e empresariais;
– Independência pessoal – no tocante à própria ideología do auditor e de seus pares; e,
– Independência técnica – no tocante à IT generalista em sua relação com a IT da área de segurança e saúde do trabalhador e vice-versa
Prometo dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade. Esse refrão, tradicionalmente utilizado nos filmes de tribunal de Hollywood, mais bem poderia ser aplicado ao juramento do inspetor, ao ingressar na carreira, integrando até mesmo seu contrato, enquanto servidor público, por representar a essência de seu trabalho: a busca incessante da verdade e sua mais cristalina expressão. Não há dever mais eticamente relevante dentro do exercício da Inspeção do Trabalho que a busca pela verdade mais absoluta e a sua cristalina expressão nos documentos oficiais emanados dessa atividade inspetora. Assim, o auditor ao lavrar um auto de infração, um termo de embargo ou interdição, ao notificar determinada empresa, ao relatar as situações encontradas está, na verdade, expressando o olhar oficial-estatal a respeito de determinado fato jurídico ocorrido no ambiente de trabalho.
A questão da nomenclatura do cargo é, também, bastante relevante. Etimologicamente, a palavra inspetor quer dizer aquele que vê, observa e fiscaliza e vem do latim inspector, significando aquele que olha em, mergulha os olhos em, examina ou passa revista. Daí a importância da visita ao local de trabalho, onde o inspetor pode, por meio dos seus sentidos, verificar se a norma está sendo cumprida, isto é, se o contrato de trabalho corresponde com a realidade das condições do meio ambiente de trabalho em toda sua magnitude. A Lei nº 6.986, de 13 de abril de 1982, alterou a denominação dos cargos no Brasil de inspetores do trabalho para fiscais do trabalho. Dessa forma, distanciava-se, o legislador brasileiro, da denominação original adotada pela OIT. Um dos motivos seria a conotação extremamente policial da denominação inspetor, especialmente em uma época marcada pelo mau uso da polícia, estendendo-se ao próprio inspetor a imagem existente então à época. Outro motivo seria a intenção do governo em atrelar o agente público da Inspeção do Trabalho a uma função prioritariamente arrecadadora. No mais, a origem etimológica da palavra fisco está intimamente ligada a idéia de um conjunto de órgãos responsáveis apenas pela arrecadação ou a fiscalização de tributos, advinda do latim fiscus que era um cesto de junco ou vime para espremer uvas ou azeitonas, utilizado em sentido figurado como cesto para guardar ou arrecadar dinheiro público destinado à sustentação do chefe de Estado, reforçando, assim, a idéia de redução das funções da Inspeção do Trabalho, no Brasil, para apenas diminuir o déficit do erário público.
Mais recentemente, outra mudança ocorre na nomenclatura do cargo de inspetor do trabalho através da Medida Provisória nº 1.915, de 29 de junho de 1999. Este instrumento normativo reestruturou a carreira da auditoria-fiscal do tesouro nacional e organizou as carreiras da auditoria-fiscal da previdência social e da fiscalização do trabalho. No tocante a esta última, ocorreu a unificação das carreiras de fiscal do trabalho, médico do trabalho, engenheiro e assistente social em uma única carreira de fiscalização do trabalho. Outro fato que se destaca dessa medida provisória é a instituição da Gratificação de Desempenho de Atividade Tributária, GDAT, como parcela dos vencimentos comum àquelas três carreiras, mais uma vez reforçando o caráter tributário dado à Inspeção do Trabalho no Brasil. Toma corpo, assim, a atual nomenclatura da Inspeção do Trabalho no Brasil, reunindo, em uma só carreira de auditores-fiscais do trabalho os antigos fiscais, médicos, engenheiros e assistentes sociais. Dessa forma, o legislador brasileiro parece ter adotado, em definitivo, o sistema pluridisciplinar de Inspeção do Trabalho.
A Lei nº 10.593, de 06 de dezembro de 2002, consolida a característica fiscal arrecadadora da Inspeção do Trabalho . Importante ressaltar como um grande avanço que reflete a evolução da instituição a ampliação da competência da Inspeção do Trabalho para além das tradicionais relações de emprego tuteladas pela CLT. Assim, o art. 11 da citada Lei nº 10.593/2002, em seu inciso I, ao estender a competência da Inspeção do Trabalho para assegurar o cumprimento das disposições legais e regulamentares no âmbito das relações de trabalho e de emprego dá um passo decisivo na consolidação da autoridade administrativa como instituição de tutela de todo trabalhador, seja ele empregado ou não. Inclui, assim, sob o manto tutelar do Estado, os autônomos, as cooperativas de trabalho e de mão de obra, os trabalhadores em economias familiares, os servidores públicos estatutários, os parceiros agrícolas, os pequenos agricultores, e outras figuras de trabalhadores não incluídos na clássica acepção da relação empregatícia. Os principais fundamentos para a extensão da tutela são a segurança e a saúde do trabalhador, principalmente ao considerarmos o direito a um meio ambiente de trabalho saudável e seguro como uma questão de direitos fundamentais de todo e qualquer trabalhador, independentemente da forma contratual e do regime adotados. A legislação brasileira harmoniza-se, assim, com a Convenção nº 150, de 7 de junho de 1978, da OIT, ainda que não ratificada pelo Brasil.
As novas formas de trabalho atípico, entendidas como todo tipo de contrato de trabalho que não seja aquele tradicional, estável e por prazo indeterminado são, sem dúvida, o grande desafio dos atuais mercados de trabalho. Quando pensamos em países marginalizados economicamente dentro da ciranda capitalista global podemos também aliar a esse desafio o enorme custo social da informalidade. Ambos, contratos atípicos e informalidade, formam o enorme calabouço da precariedade trabalhista que, em última análise, acaba por diferenciar aqueles cidadãos de primeira linha, com emprego registrado em carteira, salário, férias, décimo terceiro salário, segurança e saúde garantidas, FGTS, benefícios previdenciários e outros benefícios garantidos por lei, daquele cidadão de “segunda” que trabalha por qualquer trocado 365 dias por ano e a qualquer hora em que for chamado. Essa perversa lógica de um mercado de trabalho polarizado entre os insiders e os outsiders , ganha, no Brasil, um coadjuvante ainda mais selvagemente excluído da proteção do Estado: o outcast, representado por milhares de trabalhadores em situação de escravidão, pelas milhares de pessoas em situação de completa exclusão social em risco iminente e constante. Sua vida é tão precária que muitas vezes seu trabalho lhe garante apenas o mínimo minimorum para se manter vivo ou, não raramente, nem para isso.
Dentro dessa concepção do que é típico e atípico nas relações de trabalho, volta-se à doutrina desenvolvida na formação do Direito do Trabalho em sua tradição mais revolucionária e inovadora: sua independência do Direito Civil como doutrina própria e a consequente adoção pelo Estado da tutela e proteção não só da pessoa do trabalhador como da própria força de trabalho . A idéia de que ao trabalho executado sob a subordinação do trabalhador a alguém mais forte economicamente, corresponde um contrato de trabalho tutelado por mínimos legais, independentemente da forma pela qual esse contrato se externe, foi forjada no direito mexicano ainda no começo do século XX pelo grande juslaboralista Mario de La Cueva. O grande salto de qualidade que possibilitou esse momento de amadurecimento e independência reside justamente em que o Direito do Trabalho “não protege os acordos como tais e sim a energia do trabalho do homem” , possibilitando um grande avanço nas relações entre os seres humanos ao priorizar a realidade dos fatos ao mero invólucro contratual. Desde então a expressão contrato-realidade tem sido atribuída à própria essência do contrato de trabalho, já que a realidade não se pode negar simplesmente por uma declaração , interessando mais ao ordeanamento jurídico tutelar os reais fatos em si que a forma pela qual estes se expressam.
Poder-se-ia afirmar que um texto de 1938 já não corresponde à realidade e às necessidades atuais. Afirmação mais equivocada não poderia ser feita. O século XXI surge com a crise dos Estados que já não conseguem ter fôlego para controlar e regular a crescente internacionalização dos mercados. Há multinacionais mais ricas e poderosas que diversos Estados modernos e sua capilaridade mundo afora se dá sem grandes problemas enquanto que aquele Direito do Trabalho relacionado ao Estado nacional declina para dar espaço a um direito mais moderno, atual, internacional e refletido em normas mais suaves que tentam encontrar seu alcance nas recomendações das organizações internacionais, nas diretrizes, nos códigos de conduta, nos avisos, nos pareceres, nas declarações, nas instruções, nos programas e projetos . Tais expressões atuais do direito não são legalmente vinculantes, em seu mais estrito e kelseniano sentido, porém apresentam um caráter ético e moral indiscutível , já que são forjadas pelos próprios atores sociais de maneira dinâmica e com a participação mais ampla e democrática no âmbito das mais legítimas representações internacionais. Paralelamente a esse mundo ideal, democrático, moderno, autoregulador, persistem formas extremamente arcaicas e grotescas de servidão, bem como uma imensa zona cinzenta em que se encontram trabalhadores que tentam correr a reboque dessa modernidade utilizados como simples mercadoria dentro da lógica capitalista atual.
A recente edição da Recomendação n. 198, da OIT, de 15 de junho de 2006, sobre a relação de trabalho, apenas vem a corroborar com a atual tendência e preocupação internacional quanto às formas fraudulentas de mascaramento das relações de trabalho que buscam somente sacrificar direitos fundamentais em benefício da marcha econômica. Como uma autêntica manifestação de soft law a indicar suavemente os caminhos que os distintos Estados membros devem seguir a fim de garantir a aplicação da legislação de proteção do trabalho, a Recomendação n. 198 que está inserida em um contexto maior sobre o trabalho decente tem como principais objetivos :
– resolver incertezas quanto à relação de trabalho;
– assegurar o cumprimento e a aplicação efetiva da legislação sobre a relação do trabalho;
– lutar contra as relações de trabalho encobertas, que ocultam a sua verdadeira condição jurídica através de formas contratuais falsamente autônomas; e
– proporcionar orientação sobre a maneira mais eficaz de determinar a existência de uma relação de trabalho
Esse instrumento normativo de Direito Internacional do Trabalho é, na verdade, a mais recente e acabada versão sobre uma discussão desencadeada no início dos anos 90, no âmbito da OIT, e que já passou por debates sobre terceirização, cooperativas de trabalho, migrações, teletrabalho, trabalho infantil, relações de trabalho triangulares e trabalho informal . Seu grande mérito é consagrar no nível das normas internacionais de trabalho o princípio da primazia da realidade na sua mais pura e tradicional versão . À Inspeção do Trabalho está garantido um papel especial na proteção do trabalhador e na aplicação tanto do ordenamento jurídico trabalhista, em geral, quanto ao controle da aplicação da própria recomendação em apreço . É essa a atual tendência internacional: a extensão dos direitos fundamentais a todo trabalhador, a busca e a prática do trabalho decente e a consagração da Inspeção do Trabalho como uma das principais instituições de defesa do trabalhador e da cidadania.
Dentro desse contexto, causa repulsa e perplexidade o caminho percorrido pelo PL 6.272/05, principalmente após a inclusão da emenda nº 3. Uma aberração jurídica e um verdadeiro retrocesso histórico. O veto presidencial e o encaminhamento ao Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 536-2007, que veio a ser apensado ao Projeto de Lei nº 133-2007 por tratar da mesma matéria, são os mais novos capítulos dessa trama. O primeiro é a alternativa governamental à citada emenda nº 3. Trata, portanto, dos procedimentos a serem adotados para que a fiscalização tributária possa desconsiderar a personalidade jurídica de determinada empresa sem que haja a necessidade de declaração de nulidade do negócio jurídico por parte do Poder Judiciário. O segundo também trata desse mesmo assunto, aproximando-se mais com a vetada emenda 3 no sentido de que remete ao Poder Judiciário a competência para desconstituir as pessoas jurídicas de direito privado antes da atuação dos auditores da Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Ambos são projetos de lei completamente desprovidos de qualquer sentido jurídico. O primeiro porque prescreve de forma desnecessária o procedimento pelo qual os auditores praticarão seus atos jurídicos. Ora, a Constituição Federal já foi suficientemente clara ao indicar que a mais ampla defesa é cabível não só nos processos judiciais como também nos administrativos e a doutrina reiteradamente consagra o princípio da motivação para a validade dos atos administrativos. Do mesmo modo, a constituição atual proclama que vivemos em um Estado Democrático de Direito e isto significa que todos os atos são passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário, sendo desnecessária qualquer alusão a esse fato.
O segundo projeto revisita o princípio contido na mal fadada Emenda n. 3 e tenta uma vez mais lesar o trabalhador brasileiro ao negar competência ao Poder Executivo para constatar uma relação fraudulenta. Ora, não cabe dizer que aos auditores fiscais do trabalho carece a competência para declarar a nulidade de determinado ato jurídico justamente porquê se o ato é nulo ab initio, tudo o que o auditor faz é constatar esse fato. A apreciação feita pelo auditor-fiscal do trabalho jamais desconstitui qualquer ato jurídico. Essa análise prévia à lavratura de um auto de infração por falta de registro existe apenas no sentido de constatar a existência de um vínculo empregatício que é o mais básico elemento de arranque da garantia de tutela estatal aos direitos fundamentais do trabalhador e se encontra dentro do chamado poder-dever que a Administração Pública tem de prover o cidadão com melhor padrão de vida possível , cumprindo e fazendo cumprir a legislação de proteção ao trabalhador. Sem o vínculo empregatício não há direitos sociais. O auditor fiscal do trabalho tem o dever de ser o maior guardião do ordenamento jurídico trabalhista e esse mister somente se realiza por meio da constatação in loco da relação de emprego.
No mais, não seria a primeira vez que outros poderes interfeririam na esfera do Executivo. Decisões precipitadas e simplórias do Judiciário ao lado de tentativas frustradas do legislativo, como a Emenda nº 3, fazem coro com parte de uma doutrina equivocada que insiste em mal interpretar os fundamentos da Inspeção do Trabalho e seu papel nessa ordem globalizada em que o trabalhador somente perde, dia após dia. Assim, à semelhança dos tribunais da santa inquisição que, por muito tempo, eclipsaram o conhecimento científico, alguns setores da nossa sociedade, com o raso pretexto de que falta competência à Inspeção do Trabalho, tentam, na verdade, acobertar situações de fraude flagrante à ordem jurídica com consequências nefastas a todos, no sentido de que favorecem a precarização, a insegurança e o deterioro das relações de trabalho, que é o grande pilar da cidadania.
Depois de tudo cabe ressaltar que à diferença de Galileu Galilei, que viveu em uma época em que o simples fato de defender uma idéia baseada na ciência podia custar a própria vida do defensor, ao auditor de hoje não nos resta apenas recitar a conhecida frase do astrônomo toscano, apesar de todos aqueles atos de violência simbólica ou real perpetrados com a finalidade de calar a voz dos defensores de uma ordem jurídica mais humana que a marcha econômica em direção ao retorno de padrões falidos desde há muito possa proporcionar. O compromisso do auditor-fiscal do trabalho é com aquela missão anteriormente aludida na Convenção n. 81 da OIT e com a busca incessante da verdade no ambiente de trabalho. Assim, nenhuma lei, decreto, medida-provisória, portaria, regulamento, ou ato que o valha, tem o poder de impedir a realização do mister maior da inspeção: fazer cumprir em sua integralidade a legislação do trabalho, sem correr o risco de se tornar inconstitucional. O auditor-fiscal do trabalho é o maior agente que o Estado possui na garantia do fair play dentro das regras do capitalismo moderno, prevenindo até mesmo, por meio de sua atuação, o dumping social que agride o trabalhador cidadão, a sociedade e o próprio princípio da livre concorrência, ao garantir a aplicação de uma legislação de mínimos que proporciona direitos fundamentais a milhões de cidadãos trabalhadores evitando que, com isso, algumas empresas apresentem uma vantagem comparativa ilegítima, por explorar seus trabalhadores com o corte de direitos fundamentais.
Por fim, quando algum incauto ainda insistir nos atos de violência simbólica amiúde praticados contra os auditores-fiscais do trabalho, tentar tolher sua independência e desvirtuar sua missão, ambas internacionalmente bem delineadas há mais de um século, com o objetivo único de alimentar as relações encobertas e fraudulentas de trabalho que só prejudicam o trabalhador e a sociedade, e que, cedo ou tarde reverterão contra a própria classe empresarial, nunca é demais lembrar a conhecida frase do poeta espanhol Antonio Machado e que tão bem reflete o maior corolário do auditor-fiscal do trabalho comprometido com a busca incessante da diminuição das diferenças sociais de nosso país por meio dos direitos sociais:
“La verdad es lo que es, y sigue siendo verdad aunque se piense al revés”
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