Considerações sobre o parecer da Comissão da Reforma Trabalhista

O paradigma da proposta da reforma trabalhista brasileira: desregulamentar ao invés de democratizar.

Em parecer apresentado na Comissão Especial que analisa o Projeto de Lei n. 6.787, de 2016, do Poder Executivo, o relator Deputado Rogério Marinho destaca que

Estou convicto de que precisamos modernizar a legislação trabalhista brasileira. Precisamos abandonar as amarras do passado e trazer o Brasil para o tempo em que estamos e que vivemos, sem esquecer do país que queremos construir e deixar para nossos filhos e netos.

Sustentamos o entendimento de que a CLT tem importância destacada na sua função de estabilizar as relações de trabalho, mas que, evidentemente, sofreu desgastes com o passar dos anos, mostrando-se desatualizada em vários aspectos, o que não é de se estranhar.

É com essa visão particular que vislumbramos a presente modernização: a necessidade de trazer as leis trabalhistas para o mundo real, sem esquecer dos seus direitos básicos e das suas conquistas históricas que, por sua importância, estão inseridos no artigo 7º da Constituição da República.

Precisamos evoluir, precisamos nos igualar ao mundo em que os empregados podem executar as suas atividades sem que estejam, necessariamente, no estabelecimento; em que a informatização faz com que um empregado na China interaja com a sua empresa no Brasil em tempo real; um mundo em que se pode, e se deve, conferir maior poder de atuação às representações sindicais de trabalhadores e de empregadores para decidirem, de comum acordo, qual a melhor solução para as partes em momentos determinados e específicos.

O parecer apresenta-se como um tratado em nome de uma “atualização” do paradigma juslaboral brasileiro, que estaria ultrapassado, face a novos modos de produção introduzidos por novas tecnologias. Dada a extensão do texto produzido pelo Deputado, destacaremos algumas passagens do parecer para análise.

Propõe-se pelo Relator, como reproduzido acima, que nos igualemos ao mundo, para que, como exemplificado, possamos nos adequar a um cenário em que um empregado na China interaja com a sua empresa no Brasil em tempo real. Bem, indaga-se se as condições dos trabalhadores chineses serão a inspiração para um novo paradigma de proteção juslaboral. É desnecessário discorrer que o paradigma chinês, por razões sociais, históricas e, sobretudo, políticas, não se amolda à ordem constitucional brasileira, adotada pelo Constituinte de 1988.

O relator conclama para uma valorização das representações sindicais de trabalhadores e de empregadores, em um momento em que ele mesmo destaca cerca de 23 milhões de trabalhadores não estariam amparados por direitos constitucionalmente assegurados. Sim, isso mesmo. Constitucionalmente assegurados. Isso porque a proteção do trabalhador sob pilares de direitos humanos sociais foi adotada como paradigma da constituição da sociedade democrática brasileira, desde 08 de outubro de 1988.

Diante dos postulados constitucionais, é intrigante extrair do parecer do convivemos com dois tipos de trabalhadores: os que têm tudo – emprego, salário, direitos trabalhistas e previdenciários – e os que nada têm – os informais e os desempregados. A reforma, portanto, tem que almejar igualmente a dignidade daquele que não tem acesso aos direitos trabalhistas. E essa constatação apenas reforça a nossa convicção de que é necessária uma modificação da legislação trabalhista para que haja a ampliação do mercado de trabalho, ou seja, as modificações que forem aprovadas deverão ter por objetivo não apenas garantir melhores condições de trabalho para quem ocupa um emprego hoje, mas criar oportunidades para os que estão fora do mercado

Ou seja, o Deputado denomina “os que têm tudo” como os trabalhadores que possuem emprego, salário, direitos trabalhistas e previdenciários. Não seria esse o paradigma constitucional? “Os que têm tudo” não seriam os trabalhadores que simplesmente estão amparados pela ordem constitucional vigente, que tem como fundamento a dignidade humana?

A proposta do Deputado adota como referencial elementos econômicos -, e não sociais e jurídicos. Segundo o parecer, é “necessária uma modificação da legislação trabalhista para que haja a ampliação do mercado de trabalho”, mas não estabelece quais mecanismos e instrumentos assegurariam melhores condições de trabalho, ou apenas garantiriam o melhor aproveitamento econômico da mão-de-obra brasileira amplamente ofertada, como aponta o Relator.

Se é apontado o anacronismo da CLT, atribuir às entidades sindicais, concebidas sob o modelo inspirado – e mantido pelo Constituinte de 1988 – em parâmetros fascistas, sem um debate amplo e irrestrito do seu papel na sociedade pós-moderna, é assumir um risco de altíssima relevância para todo o conjunto social brasileiro. O nosso modelo sindical, desde a Era Vargas, foi mantido por impostos e contribuições, compulsoriamente cobrados. É sabido que, por conta desse modelo, se promoveu a representação de trabalhadores e empregadores, mas nem sempre a sua representatividade. Culpa das entidades ou da conveniência estatal? Essa é uma outra discussão, mas cujos reflexos impactam no tema ora tratado.

O que se olvida nesse árduo debate é que a construção do paradigma de proteção ao trabalho se pauta na proteção de bens jurídicos essenciais à dignidade humana, compreendida como condições básicas de garantia de vida e de saúde. Daí, estabelece-se a rigidez das normas.  Sim, Relator, muitas delas são muito rígidas, e essa rigidez não provoca um alto grau de insegurança jurídica na contratação do trabalhador; pelo menos não para o trabalhador, que também é parte contratante.

Ora, o empregador que tem receio de contratar a mão de obra em razão das normas vigentes não está comprometido com o paradigma constitucional, e, sem dúvida, irá investir em outros países, onde certamente será possível a exploração de mão de obra de maneira indiscriminada. A questão é: em nome do crescimento econômico do País, pode-se desconstruir o paradigma de proteção à dignidade do trabalhador? Sem dúvida, é uma escolha para a constituição da sociedade brasileira.

O paradigma hoje adotado não comporta a relativização indiscriminada de direitos trabalhistas, uma vez que o art. 7º da Constituição Federal reconhece direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, reconhecidos em convenção ou acordo coletivo (inciso XXVI). Frisa-se: esse é o modelo do Constituinte de 1988.

O Relator suscita a importância de disciplinar novas modalidades de contratação “decorrentes das inovações tecnológicas e as suas consequências, tais como o contrato de trabalho intermitente e o teletrabalho”. Talvez um olhar mais atento do Relator sobre o sistema juslaboral permitiria concluir que tais modalidades de contrato de trabalho já foram disciplinadas na nova redação conferida ao artigo 6º da CLT, em 2011, pela Lei n. 12.551, a saber:

Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.

Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.

Se a redação dada pela 12.551, de 15 de dezembro de 2011, visou à proteção das condições de trabalho nessas novas formas de contratação – em que se inclui o teletrabalho, home office etc. -, não é demais frisar que essa disciplina apenas e tão somente atende ao modelo constitucionalmente erigido pela sociedade brasileira, desde outubro de 1988.

Quanto à busca pelo Judiciário Trabalhista, denota duas situações: desrespeito às normas trabalhistas e a democratização do Judiciário. Reduzir direitos para que não haja o que pleitear não deixa de ser uma tentativa de restrição a um processo de acesso à Justiça pela população e, acima de tudo, de cultura pela observância de normas laborais. “Convite ao litígio” é o desrespeito de normas trabalhistas que asseguram respeito à jornada e ao salário.

Enfim, a falácia do argumento salta aos olhos. Aliás, interessante a justificativa para alteração do artigo 61 da CLT:

Art. 61

O art. 61 é medida a desburocratizar a relação de emprego.

Quando há necessidade de horas extras, por motivo de força maior ou em casos urgentes por serviço inadiável, as horas extras laboradas que extrapolarem o limite legal não precisarão ser comunicadas ao Ministério do Trabalho.

Primeiro, porque serviços inadiáveis, urgentes ou de força maior não são recorrentes.

Segundo, porque, se a empresa, eventualmente, se utilizar deste expediente para fraudar a lei, qualquer trabalhador pode denunciar o caso, inclusive de maneira anônima, até mesmo pela internet, junto ao Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e ainda reclamar direitos ao Poder Judiciário.

A informação ao Ministério do Trabalho visa precisamente ao acompanhamento da extrapolação de jornada, nos casos previstos legalmente, a fim de evitar abusos que levassem à sobrecarga de ações no Judiciário. A propósito, essa é uma das funções primordiais da Fiscalização do Trabalho: verificar o cumprimento das normas trabalhistas, de maneira coletiva, com vistas a garantir direitos, que, uma vez respeitados, não serão objeto de demandas judiciais. A comunicação ao Ministério do Trabalho da extrapolação da jornada em casos de necessidade imperiosa objetiva, inicialmente, resguardar as partes do contrato de trabalho: empregado e empregador. Ao empregado, cuja exploração da mão de obra além da jornada contratada foi exigida por situação imprevista pelo empregador. Ao empregador, que, ao comunicar a unidade ministerial sobre o fato, resguarda-se quanto a futuros questionamentos sobre a legalidade da extrapolação da jornada contratual.

É indiscutível que o descumprimento às normas trabalhistas é o motivo central a ensejar o recurso ao Judiciário, com ultima ratio de que dispõe o trabalhador, para proteção de seus direitos, e não a rigidez das normas.

Logo, é incongruente “desburocratizar a relação de emprego”, pois, se restar configurada a fraude, há como recorrer aos órgãos estatais. O propósito do legislador é a eficiência de suas medidas, dentre elas, coibir as práticas fraudulentas e, por conseguinte, reduzir o descumprimento de normas que implicam ações no Judiciário.

Questiona o Relator a frequência de “celebração de homologações entre as partes, mormente na presença dos representantes sindicais, como exige o § 1º do art. 477 da CLT para os contratos com mais de um ano de vigência, para, tempos depois, o empregado ajuizar reclamação trabalhista requerendo as mesmas parcelas que foram objeto da homologação”. Inicialmente,  a quitação mediante recibo tem eficácia liberatória em relação aos valores nele contido. Não é possível provar que recebeu o que não consta do recibo de quitação. Essa máxima jurídica civil aplica-se ao termo de rescisão do contrato de trabalho (TRCT). A quitação passada pelo empregado, com assistência de entidade sindical de sua categoria, ao empregador, com observância dos requisitos exigidos nos parágrafos do art. 477 da CLT, tem eficácia liberatória apenas em relação às parcelas expressamente consignadas no recibo (TRCT).

Mas o direito de ação é garantido constitucionalmente, o que difere do direito à procedência do pedido formulado na ação. Assim, se o trabalhador quiser ingressar com reclamatória trabalhista para reclamar parcela que consta do recibo, a Constituição assegura o acesso ao Judiciário. Contudo, a procedência desse pedido não lhe é garantida.

A quantidade de propostas e sua abrangência reforçam a importância de um debate mais extenso e amplo, com promoção de estudos de impacto das propostas não apenas no campo econômico, mas, acima de tudo, no âmbito social.

Entretanto, ainda cabe uma última menção sobre a proposta de “valorização da autonomia privada coletiva” no cenário sindical brasileiro.

A profusão de sindicatos no Brasil em comparação com outros países decorre do modelo sindical adotado. No entanto, ainda que necessária, a mudança de um modelo sindical implica maturação sociocultural dos trabalhadores, e não pode ser fruto de uma imposição estatal para ajustamento a uma reforma trabalhista. Se agir assim, mais uma vez na História Sindical Brasileira, estar-se-ia impondo a forma de organização, e não promovendo a democratização da experiência sindical, com riscos à evolução do movimento social dos trabalhadores.

A única resposta dada pelo Relator para o número expressivo de sindicatos no Brasil é a contribuição sindical, e não o modelo de categoria, ou seja, a forma de organização “setorizada”, fruto de um modelo de controle econômico pelo Estado.

Ainda que questionável, é a noção de categoria que, social e culturalmente, engajou o trabalhador brasileiro no universo sindical. A ruptura com esse paradigma não deve ser fruto de uma imposição, e sim da consagração da liberdade sindical.

Conclui-se, portanto, que, muito antes de alterar o paradigma juslaboral, há de se garantir os meios e instrumentos de preservação da dignidade do trabalhador no cenário do modelo proposto.

Afirmar a autonomia privada coletiva em um contexto em que ela não teve espaço para se desenvolver – como reconhecido pelo próprio relator – é temerário, além de comprometer as conquistas trabalhistas alcançadas e de perder uma oportunidade ímpar para assegurar a plena liberdade sindical. Não se trata do exercício da autonomia individual – referencial econômico –, e sim da autonomia coletiva, fruto de uma evolução das relações sociais e do engajamento democrático.

Finalmente, por se tratar de uma proposta que traduz inexoravelmente uma ruptura de paradigma, entende-se que o debate deve seguir aberto, com elaboração de estudos de impacto do modelo proposto, principalmente na esfera sindical. Sem isso, expõe-se a sociedade brasileira à adoção de padrões que não incentivarão eficientemente os agentes econômicos para a maximização da exploração de bens e serviços que compõem a riqueza de uma sociedade, dentre eles a vida e a saúde do trabalhador.

Dra. Beatriz Montanhana, Diretora do Sindicato Paulista dos Auditores Fiscais do Trabalho SINPAIT. Graduada, Mestre e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo.

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